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domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Jornada sem Fim - Veraneio em Tramandaí, a partida

Inicio hoje a publicação de mais um folhetim virtual. Baseado nas memórias de meu sogro, Antonio, e em algumas imagens por ele cedidas e outras do jornalnh, de fotosantigas.pratti e da internet, elaborei uma cronica sobre os veraneios em Tramandaí a partir da década de 30 do século passado. No domingo que vem, não perca o próximo capítulo, e para quem não acompanhou o folhetim anterior, Diário de Bordo 1500 - a Descoberta do Brasil é só entrar na página Urbano livro, nos contos, ensaios e cronicas.
O autor, Paulo Bettanin
 
O  ruído do motor sobressaltou-me. Nem havia a necessidade da surpresa, pois mal consegui pregar o olho a noite toda.
Meu coração infantil aguardava ansiosamente ouvir o familiar som do Oldsmobile 1929 verde escuro, placas RGS 227 do Dr. Júlio, meu pai, estacionando em frente a nossa casa, na Rua São Pedro.
Já bem desperto, acompanhei em pensamento, sua caminhada até a Avenida Eduardo, quase em frente à Casa Masson, para buscar o nosso automóvel na garagem do Seu Domingos.
Estamos no verão, janeiro de 1931, e os próximos noventa dias serão de muitas emoções.
Meu irmão caçula e minha irmã dormem tranqüilos, com ansiedade antevejo a grande aventura que está para iniciar.
São quase três horas da manhã, a escuridão ainda projeta seu manto sobre a cidade, e os silêncios da madrugada somente são cortados pelos entregadores de leite que iniciam a sua atividade diária.
Finalmente aconteceu. Somos acordados, um a um e começa a função. Todas as providências já foram tomadas para nossa viagem. As duas grandes pranchas de madeira já foram aparafusadas nos pára-lamas do automóvel, onde serão acomodados, além dos dois galões de gasolina com 40 litros cada, toda sorte de ferramentas e utensílios necessários para a empreitada, que incluem pás, picaretas, correntes para os pneus traseiros, fogareiro de pressão e muito mais. 
Dna. Paulina, minha mãe já havia preparado na véspera nossa refeição para a longa viagem. No dia anterior, o Manuel da padaria que ficava na esquina da nossa rua com a Minas Gerais, atual Av. Farrapos, entregou seis pães franceses de meio quilo, três galinhas caipiras foram compradas no Lunardi Secos e molhados, e assadas. Ovos e farofa também foram feitos no fogão a lenha, e fariam parte do nosso almoço. Lembrei que em outro dia, perguntei ao meu pai porque a mãe do João, meu amigo, não usava lenha para cozinhar, e então fiquei sabendo que muitos bairros da nossa cidade possuem gás encanado(Cidade Baixa, Centro, Independência, Moinhos de Vento).
Ali na porta da cozinha, amontoavam-se as malas de papelão encerado com nossas roupas cuidadosamente acomodadas.
Minha mãe servia o café da manhã quando chegou meu tio Carlos, como sempre contando as novidades sobre os últimos lançamentos dos cinemas. Ele é fiscal das Companhias Cinematográficas americanas, e fala entusiasmado sobre o documentário “A avançada das tropas gaúchas”, dirigido por Eduardo Abelim e produzido pela empresa Gaúcha Film. Todos acomodados, meu pai e minha mãe no grande banco da frente, e atrás nós, seus quatro filhos, além do tio. Colocamo-nos em marcha, seguindo pela Rua São Pedro, deixando para trás a Rua Pernambuco, passando agora pela Avenida Bahia. Na esquina da Benjamin Constant dobramos à direita, subindo a Bordini e alcançando a Vinte e Quatro de Outubro. Junto a Hidráulica já avisto a enorme torre de madeira da Rádio Gaúcha, cópia assumida da torre de Paris, segundo meu pai, prefixo PRA-Q, “A Voz dos Pampas”.
Meu tio intervém para dizer que conhece o Sr. Carlos Ribeiro de Freitas, inclusive já tendo visitado o estúdio no sexto andar do Grande Hotel, na Rua dos Andradas, em frente a Praça da Alfândega, de onde são transmitidos os programas. Meu pai relembra a inauguração da Rádio Sociedade Rio-grandense, em 1924, e a surpresa causada pelas galenas, ligadas a baterias, algumas com cornetas para amplificar o som. Ainda hoje arrepende-se de ter sido um dos 300 associados que mensalmente desembolsava 5 mil réis para manter a rádio, que não durou dois anos, pois a maior parte dos sócios não cumprira suas obrigações.
Estamos na Independência, onde os volumes dos grandes casarios se projetam sobre as sombras da cidade. Acenamos felizes para o soldado do quartel do 7º Batalhão na esquina da Avenida João Pessoa com a Duque de Caxias. Estamos agora na Bento Gonçalves, onde nos divertimos contando os pares de olhos de boi refletidos pelos faróis do carro. Subitamente, na altura do Hospital São Pedro, inicia a trilha de terra batida. Deixamos para trás a suave pavimentação de pedra irregular da nossa cidade, e avisto alguns pontos de luz no horizonte, indicando o início de mais um dia. Amanhece quando chegamos a cidade de Viamão, contornamos a Igreja Matriz do município, e passamos pelo Paradouro Arabataxi, onde são servidos cafés coloniais, e vendidos produtos artesanais como rapaduras, pães, cachaça, e outros. Não perdemos tempo pedindo ao  pai para darmos uma parada, pois sabemos que ele estabeleceu o roteiro e não pretende modificá-lo por nenhum motivo.
Estava distraído admirando a paisagem rural que nos envolvia, ao longe uma tortuosa fumaça indicando um rancho, gado pastando, plantações, quando levei um susto ao sentir que o carro parara. Avistei pela janela meu pai, que havia descido e encontrava-se conversando com um estancieiro de bombachas junto à porteira. Pouco depois, retorna com cara de poucos amigos.
- Mil réis para atravessar uma porteira! Esta cena se repetiria muitas vezes durante a viagem.
A proximidade com o rio Capivari indica que, finalmente, faremos uma parada. A familiar figueira espreitava, com seu grande guarda-chuva de folhas, a aproximação de nossa caravana. Descemos todos do automóvel,o sol já alto no céu indicava o meio-dia, nossa mãe providenciando o almoço, nosso pai nos solicitando cuidado. Uma grande toalha de algodão xadrez era estendida sobre a relva macia, dispostos nela os alimentos. Meu pai busca no carro o fogareiro de pressão, coloca querosene, com a mão empurra a bomba, regula a pressão do combustível e acende o espalha-chamas. Minha mãe coloca a água recolhida junto ao rio no fogo e, quando aquecida, prepara o chimarrão.
Após o almoço, descansamos sobre a sombra da figueira, enquanto meu pai e meu tio enrolam um palheiro e discutem a tal política. Trechos das conversas dissimuladas dos dois chegam aos nossos ouvidos trazidos pelo nordestão: Política café com leite, quebra da bolsa de valores em 1929, Júlio Prestes, governo provisório, fraude República velha, operariado brasileiro vai receber a série de benefícios sociais.
Por volta das treze horas retomamos a viagem. Meu pai, na direção, solicita ao tio Carlos que, com uma taquara, encontre o local mais apropriado para atravessarmos o Rio Capivari. Deliciado, observo a água barrenta do rio escorrer entre os pára-lamas do nosso automóvel.
São três horas da tarde quando atravessamos o túnel verde. Neste ponto, iniciam as dunas de areia. Os proprietários das fazendas já haviam providenciado para o veraneio as esteiras de madeira cuidadosamente amarradas com corda, afastadas entre si por aproximadamente quinze centímetros. Novamente meu pai retirava da carteira notas de quinhentos ou mil réis para obter dos estancieiros a permissão para atravessar suas terras.
Adiante, encontramos um trecho onde as esteiras não haviam sido recuperadas. Meu pai, com a ajuda do macaco mecânico, coloca as correntes de ferro nos pneus traseiros que diligentemente trouxe. As correntes somente serão retiradas em Cidreira, onde estaremos chegando às dezesseis horas. No trajeto encontramos duas juntas de boi ao longo da trilha, que aguardam pacientemente motoristas não previdentes que eventualmente venham a atolar na areia fofa, e desta forma arrecadar alguns trocados. Não encontramos nenhum outro veículo até o momento. Ao chegarmos a Cidreira, meu pai novamente pára o carro, e repete o ritual de, com o macaco, retirar as correntes dos pneus traseiros. Não são mais necessárias, pois a areia úmida da praia nos levará ao nosso destino. À nossa volta, bandos de inumeráveis maçaricos e gaivotas revoam à nossa aproximação, e as ondas espumantes do mar límpido trazem muitos mariscos, conchas e peixes. Passamos pelo farol, estrutura de aço que se destaca na paisagem de dunas e areia sem fim.
Em meia hora estamos em Tramandaí, povoado de pescadores com muitos ranchos de palha, uma centena de casas de madeira. Dobramos a esquerda na rua da Matriz, e na esquina da Rua Emancipação paramos em frente a Igreja Matriz, construída em alvenaria, onde minha mãe agradece a sua santa de devoção por termos chegado bem, e nos encaminhamos ao hotel Correa, na verdejante rua Emancipação.
Meu pai, ciente da proibição de circulação de automoveis nos tapetes verdes que nos cercam, apressa-se em chegar à parte traseira do hotel. Além do Correa, nesta época Tramandaí conta com uma rede hoteleira composta dos Hotéis Sperb, Gaúcho, Strassburger, e muitas pousadas.
Já nos aguarda o Senhor Correa com as chaves do chalé número cinco, que a cada vinda nossa, nos é reservado. Descarregamos as malas e, enquanto meu pai conduz o automóvel ao telheiro localizado nos fundos do terreno onde, depois de devidamente estacionado, permanecerá  noventa dias de nossa estada na praia. Caminhamos pela grama recém aparada, rumo à nossa residência praiana. Ao nos aproximarmos, observei que as telhas haviam sido substituídas, e o penetrante odor de tinta nova sobre a madeira evidenciava que estava tudo preparado para nós. Os dois quartos e a sala seriam suficientes para nos abrigar. Informei a minha mãe que estava necessitado, e fomos os dois até o conjunto de casinhas em madeira numeradas conforme os chalés. Entrei e como sempre acontecia, assustei-me com o enorme buraco no meio da tábua de madeira, que parece sempre querer me engolir para as entranhas da terra. Superado o medo, consigo realizar meu intento. À noite, o providencial urinol em baixo da cama substitui a ida ao banheiro.
Voltando pelo caminho de pedras encontramos nossa família dirigindo-se para o grande salão onde, pontualmente às dezenove horas, seria servido o jantar, já com os lampiões a querosene espalhando suas luzes amareladas pelo ambiente. Encontramos os velhos conhecidos de todos os anos, meus pais os abraçam efusivamente, e nos sentamos para a refeição da noite. Apesar de nosso cansaço, devoramos todos os pratos oferecidos. Após o jantar, como sempre acontecia, eram recolhidas as mesas e cadeiras e, com a chegada do pianista e da violinista iniciavam-se as danças, que incluíam partituras clássicas, sambas, valsas, tangos, jazz e chorinho. Como a fadiga era enorme, nos retiramos para o chalé. Apesar de todas as aventuras do dia, minha ansiedade por rever o mar era enorme. Perguntei novamente ao meu pai porque não podíamos ir pela manhã até a praia, e recebi a mesma explicação de todos os anos:
-Porque o transporte funciona somente à tarde, Antonio, e também porque o horário de banho sempre foi entre as três e as cinco horas. Senti sede, e meu pai acionou a bomba manual, que entre rangidos e engasgos, encheu meu copo de água vinda direto das profundezas da terra, conforme sempre dizia meu tio Carlos. 
O bater do sino indica que são dez horas da noite, e os lampiões a querosene serão desligados para dormirmos. Felizmente, pelo adiantado da hora, escapei do banho frio na tina de folha. Em pouco tempo somente a colcha de estrelas e a grande lua cheia que constituem nosso firmamento serão os únicos pontos luminosos em toda Tramandaí. O ruido do mar tão próximo embala meus sonhos de criança.

Acompanhe o segundo capítulo de "A Jornada sem Fim-Veraneio em Tramandaí" no próximo domingo dia 06.03.2011

Um comentário:

  1. Muito legal a primeira parte da narrativa. E tem gente que reclama do congestionamento na freeway hehehehe. Com o tempo, como disse aquele meu ex-professor da Famecos, as pessoas foram perdendo a capacidade de celebrar. E isso vale para veraneio, natal, ano-novo...aBRAção!

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